sábado, 18 de dezembro de 2010

Ponto de Interrogação - 3



Leia antes Ponto de Interrogação 1 e 2 abaixo

Amigos, os que assistiram ao filme “O Náufrago”, com Tom Hamks, hão de se lembrar da cena em que ele, depois do acidente aéreo que sofre, vai parar numa ilha deserta. Aos poucos, começa a se adaptar à nova realidade. Recolhe alguns destroços e encomendas que boiavam. Entre essas coisas há uma bola de vôlei, da marca Wilson, à qual ele elege como seu novo amigo. Passa a conversar com ela, procura dar-lhe uma aparência humana. Vira uma companheira imaginária. De certa maneira, esta bola evita que ele enlouqueça. Ele podia viver sem muita coisa, mas a solidão era algo insuportável.

Depois que Jó perde tudo e acha que nada poderia ser pior do que as muitas desgraças que lhe haviam acometido nos últimos dias, ele começa a sentir umas coceiras estranhas. Primeiro, surgiram somente umas bolhas, do tipo catapora. Nada que um banho de permanganato de potássio não aliviasse. Verdade que ele teria que comprar fiado na farmácia, porque não tinha mais um centavo furado no bolso. O problema é que não era catapora. Era um tipo terrível e raro de câncer de pele, que começou a devastar a saúde do homem. Em poucas horas, as bolhas tinham virado feridas purulentas e mal-cheirosas. Não era somente uma “erupção subcutânea”. A doença afetou todo o metabolismo de Jó. Quem lê somente os dois primeiros capítulos, tem idéia de um homem meio parecido com o Mahatma Gandhi, sentado no chão se coçando com um caco. Mas a cena que o próprio Jó descreve ao longo da sua poesia é algo muitas vezes pior do que essa. Veja algumas coisas e, se tiver um tempinho, confira as referências em sua Bíblia.

Ele não tinha mais casa. Estava agora sentado no lixão da cidade (30:24). Sentia dores constantes (2:13; 9:28); passou a sofrer de insônia e falta de ar, suas chagas formaram crostas e produziam vermes que andavam dentro delas (7:3-5; 9:17, 18); tinha olheiras profundas (16:16). Seu hálito e o mau cheiro das feridas tornou-se intolerável (19:17). Sua pele ficou escurecida e ele tinha febre alta o tempo todo (20:30). Como se poderia esperar, ficou extremamente magro (16:8; 19:20), uma vez que não conseguia comer e nada parava no seu estômago lesado.

Além disso, seus “amigos” de outrora desapareceram. Ninguém mais ligava para ele nem vinha visitá-lo. Acredite, todos nós temos “amigos” assim. Quando tudo está indo bem, eles estão sempre bajulando. Têm um largo sorriso, convidam você para seus jantares e sociabilidades, telefonam sem motivo especial, querem saber como vão os negócios, se os filhos estão bem. Na hora que a coisa aperta ou não há nada mais que os faça “interessar-se” por você, somem todos. Muitos criticam a mulher de Jó por sua atitude e seus conselhos errados. O próprio Jó disse que ela estava falando como uma doida varrida. Mas pelo menos ela estava lá. Não fez como algumas mulheres, que abandonam seus maridos à própria sorte na hora da amargura. Ela também tinha sofrido perdas. Os filhos eram dela também. A 1ª dama do Oriente agora estava na rua da amargura. E ela ficou ali até o fim.

Quatro amigos fizeram a exceção da regra. Elifaz. Bildade. Zofar. Eliú. Eles moravam longe. Tiveram que viajar de suas casas para encontrar Jó. Quando ouviram as aterrorizantes notícias, deixaram o que estavam fazendo, combinaram e vieram juntos para visitar o amigo. Chegaram lá e não podiam acreditar no que viam. Nem reconheceram a figura esquálida do ex-magnata do Leste. Choraram, choraram alto, não fazendo a mínima questão de esconder o sentimento de tristeza que assolava suas almas. Rasgaram suas roupas e jogaram pó sobre suas cabeças, num ato visível de consternação, de indignação, de extrema amargura e desespero.

Então sentaram-se no chão ao lado de Jó. Ficaram sem fala. 7 dias e 7 noites. Nem uma palavra. Só ficaram ali. Não era bom negócio ser amigo de um Jó naquelas condições. Era vexatório. As pessoas passavam na rua e zombavam dele. Comentavam uns com os outros “mas aquele ali não era o dono da transportadora? Credo! Que coisa horrível ele virou!”. Seus amigos não se importaram com isso. Vieram prestar sua solidariedade. Estenderam o bálsamo da sua visita e do seu consolador silêncio.

Eu preciso de amigos assim. Preciso de gente que saiba entender que o silêncio também fala. O silêncio consola. Dou graças a Deus porque, embora meu sofrimento não chegue aos pés do de Jó, tenho mais do que 4 amigos que não me abandonam. Pessoas que não precisam explicar porquê são meus amigos. Que não têm vergonha de se declararem assim, independentemente do que as outras pessoas vão dizer ou pensar. Gente que senta no chão e chora junto comigo quando precisa, porque sabe que nem tudo na vida é controlado por nossos planos e desejos. Há momentos em que as coisas saem do trilho. Dou graças a Deus por esses verdadeiros amigos, que não me cercam apenas quando interessa, que não me usam para fazer e falar o que eles querem, enquanto querem, e depois me descartam, mas, ao contrário, têm tempo para me ouvir, para me aconselhar, para me orientar, para me entender e para andar comigo.

Pena que os amigos de Jó não ficaram assim até o fim da história. Teriam entrado para a posteridade como uma referência universal de consoladores em todos os tempos. É que depois de 7 dias e 7 noites, eles resolveram abrir a boca. E aí tentaram fazer o que não sabiam: explicar o imponderável. Talvez porque se acharam na obrigação de dizer “alguma coisa”, perderam-se em divagações filosóficas e teológicas, que só aumentaram o sofrimento daquele a quem tinham vindo tão altruisticamente consolar. Mas isso é assunto para outra série, ou talvez para um livro no futuro.

Marcos Senghi Soares
Publicado originalmente em 2006, na Colunet de www.irmaos.com

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